terça-feira, 24 de janeiro de 2012

POVO – Luis Fernando Veríssimo

POVO – Luis Fernando Veríssimo
-Geneci...
- Senhora?
- Preciso falar com você.
- O que foi? O almoço não estava bom?
-O almoço estava ótimo. Não é isso. Precisamos conversar.
-Aqui na cozinha?
- Aqui mesmo. O seu patrão não pode ouvir.
-Sim, senhora.
-Você...
-Foi o copo que eu quebrei?
-Quer ficar quieta e me escutar?
-Sim, senhora.
-Não foi o copo. Você vai sair na escola certo?
-Vou, sim senhora. Mas se a senhora quiser que eu venha na terça...
-Não é isso, Geneci!
-Desculpe.
-É que eu... Geneci, eu queria sair na sua escola.
-Mas...
-Ou fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Não agüento ficar fora do Carnaval!
-Mas...
-Vocês não têm, sei lá, uma ala das patroas? Qualquer coisa.
-Se a senhora tivesse falado antes...
- Eu sei. Agora é tarde. Para a fantasia e tudo o mais. Mas eu improviso uma baiana. Deusa grega, que é só um lençol.
- Não sei...
-Saio na bateria. Empurrando alegoria.
-Olhe que não é fácil...
-Eu sei. Mas eu quero participar. Eu sambo direitinho. Você nunca me viu sambar? Nos bailes do clube, por exemplo. Toca um samba e lá vou eu. Até acho que tenho um pé na cozinha. Quer dizer. Desculpe.
- Tudo bem.
-Eu também sou povo, Geneci. Quando vejo uma escola passar, fico toda arrepiada.
-Mas a senhora pode assistir.
- Mas eu quero participar, você não entende? No meio da massa. Sentir o que o povo sente. Vibrar, cantar, pular suar.
- Olhe...
- Por que só vocês podem ser povo? Eu também tenho o direito.
- Não sei...
- Se precisar pagar eu pago.
-Não é isso. É que...
- Está bem. Olhe aqui. Não preciso nem sair na avenida. Posso costurar. Ajudar a organizar o pessoal. Ajudar no transporte. O Alfa Romeo está aí mesmo. Tem a Caravan, se o patrão não der falta. É a emoção em participar que me interessa, entende? Poder dizer “a minha escola”. Eu teria assunto para o resto do ano. Minhas amigas ficariam loucas de inveja. Alguns iam torcer o nariz, claro. Mas eu não sou assim. Eu sou legal. Eu não sou legal com você Geneci? Sempre tratei de você de igual para igual.
-Tratou sim, senhora.
-Meu deus, a ama-de-leite da minha mãe era preta!
-Sim, senhora.
-Geneci, é um favor que você me faz. Em nome da nossa velha amizade. Faço qualquer coisa pela nossa escola, Geneci.
-Bom, se a senhora está mesmo disposta...
-Qualquer coisa, Geneci.
-É que o Rudinei e Fátima Araci não têm com quem ficar.
-Quem?
-Minhas crianças.
-Ah.
-Se a senhora pudesse ficar com eles enquanto eu desfilo...
-Certo. Bom.Vou pensar. Depois a gente vê.
- Eu posso trazer elas e...
-Já disse que vou pensar, Geneci. Sirva o cafezinho na sala.

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